O Deserto

            Andava fazia dias pelos entremeios do deserto sem forma, se arrastando ao longo das horas, peregrinando sem motivo e sem razão pela tela arenosa da qual era formado o chão. Pintava com os pés, o peregrino, ao andar durante os dias escaldantes que ressecavam os olhos e faziam lhe correr o suor pela tez que, apesar da ação do sol, não havia escurecido nenhum tom. À noite, deitava e descansava imerso na areia, buscando impedir que o vento gélido lhe cortasse os lábios. Usava panos e se cobria inteiro com eles ao baixar o sol. Tornava-se uma massa de tecidos com contornos quase humanos, e mantinha-se inerte na noite, mas era incapaz de dormir até que fosse muito tarde, mesmo que sentisse o inescapável jugo do caminhar desde a sola dos pés até seu último fio de cabelo. Quando o sol nascia, permanecia encasulado até reganhar suas forças para retomar seu movimento necessário em direção ao nascer do Sol.

            Movia-se para o Leste quase que sem razão. Movia-se ao Leste pois ouvira que lá ainda não havia se tornado domínio da imparcial areia, mas duvidava mesmo dessa tola esperança. Movia-se ao Leste pois não tinha outra saída senão mover-se, mesmo que cada passo dado no deserto fosse uniforme e todas as direções parecessem levar ao mesmo lugar: lugar nenhum. O tempo também era uniforme e todos os dias lhe eram iguais. O deserto não conhece tempo nem espaço, mas rouba a forma de ambos ao mata-los. Do tempo, o que restara fora o vazio do uniforme, já do espaço, o que restara era um infinito que pouco se distinguia do quarto mais claustrofóbico. Aquela imensidão era claustrofóbica, pois obrigava o peregrino a voltar-se a si mesmo e viver apenas de seus pensamentos, o que era o maior castigo.

            Na imensidão do vazio tocado pelo sol, buscava lembrar de um tempo antes do deserto, mas parecia incapaz. O deserto se alimentava das memórias e destruía o passado do mesmo jeito que fizera com o futuro. As memórias que precediam os dias do ardor solar e do pisar árido pareciam existir apenas para justificar o próprio deserto, e o mundo festivo e preenchido de outrora servia apenas para tornar mais árdua a caminhada. O deserto era um monstro dialético, o contrário de tudo, que residia no centro da mente do peregrino, de modo que o mundo agora só podia ser compreendido tendo em vistas o deserto.  Explicar o mundo não era mais falar de homens, mulheres, sonhos, ideias. Explicar o mundo era explicar o deserto.

            Mas era impossível qualquer explicação ao Behemot que era o deserto, assim como foram impossíveis as explicações que foram dadas a coisas como Deus ou Primeiro-motor. Claro, podia-se descrever o deserto. Podiam falar da peculiaridade de sua areia. Falar de como ela parecia ser feita de cimento, tijolo, vidro, concreto e aço. Como ela tinha cheiro de sangue e às vezes parecia ser puro pó de osso. Como a areia parecia ser feita do próprio mundo. Mas isso não era explicar o deserto. Isso não era ser capaz de conceitualizar sua totalidade e toda a sua extensão e magnitude. Do deserto só se podia falar com “não”. Só poderíamos dizer que ele não acaba, que sua extensão é não mensurável e que não há nada nele que não seja a areia do grande ‘não’ do mundo.

            E esse ‘não’ gritava. À noite, o peregrino ouvia o vento como uivos estridentes que se assemelhavam a lamentos humanos, incapazes de serem atendidos. Na primeira vez que ouvira, o peregrino correra na direção do som, mas não havia nada no local. E nem poderia haver. O vento era o próprio grito que surgia do nada, espontaneamente brotando como consequência do vazio. E toda a noite, o peregrino ouvia o vazio gritar e permanecia imóvel, pois saberia ser incapaz de acabar com os gritos. Saberia que para acabar com aquilo precisaria acabar com o próprio deserto. Toda noite, quando sentia o vento, soltava lágrimas frias que lhe desciam pelo rosto, até serem absorvidas pelo tecido que o cobria.

            E era disso que ele vivia. A única água que bebia há dias era a de seu próprio suor e lágrimas. O seu único alimento eram as pontas de seu cabelo e suas unhas que cresciam cada vez mais. Se alimentava de si mesmo. Às vezes, em momentos de grande desespero, comia a própria areia na qual pisava. Sentia descer pela garganta o gosto da podridão. Um gosto cadavérico, mesmo que seco e quase indigerível. Sentia o gosto do próprio desespero, não apenas seu, mas de todo o espírito. Sentia-se sujo quando comia a areia. Sentia que se alimentava de seus irmãos e de todos aqueles que viveram antes do deserto.

            E ainda assim, seguia. Sentia-se cada vez mais fraco e desacreditado. Seguia nessa solidão onde a única saída era se retroalimentar. Seguia pintando a areia com os passos, apagados todas as noites pelo vento. Sentia que os dias perdiam as formas, tornara-se incapaz de conta-los. Mas ainda assim, caminhava, como que força necessária. Pois se houvesse um jeito de fugir do deserto, esse era o jeito. A única alternativa ao solitário caminhar era a barbárie pura do retorno. Era retornar ao velho mundo de onde partira, mundo esse que se preparava para ser engolfado pelo novo mundo árido. Não havia escapatória senão a solidão. O deserto se alimentava do mundo, se alimentava das cidades e da miséria por elas gerada. O deserto se alimentava de ganância e de tudo aquilo que era velho no mundo, desde as muralhas, dos homens, mulheres e da própria ordem das coisas. O único fato que permanecia era a certeza da falha do velho mundo, incapaz de conter os arenosos ímpetos da massa homogênea, assassina do tempo, cova do mundo, abandono universal.

Arthur Santana, escrito em meados de abril de 2020

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